sábado, 12 de abril de 2014

ÔNUS da PROVA

A segunda noção relaciona-se à inversão do ônus da prova, prevista no inciso VIII do art. 6º do CDC, mas que não se relaciona necessariamente à condição econômica dos envolvidos. “Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais ‘pobre”. Note-se, portanto, que as duas leis trazem dois conceitos bastante diversos de hipossuficiência, para serem utilizados em situações diversas.

Conforme se depreende dos dispositivos supracitados, hipossuficiente é aquele que, no caso concreto, comprova estar em situação desprivilegiada, carecendo de benefícios, tendo então o amparo da lei que concede os benefícios – como a justiça gratuita e a inversão do ônus da prova. É a lei que define quem é hipossuficiente, e é no caso concreto que se verifica se a hipossuficiência existe.

Chegou o momento de confrontar vulnerabilidade e hipossuficiência.


 Inversão do ônus da prova

Por força do art. 333 do Código de Processo Civil, o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo do seu direito (inciso I), ou ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (inciso II). A distribuição tem tanto finalidade de instrução, para as partes, quanto de julgamento, para o julgador. Contudo, não é sem razão que Marinoni e Mitidiero ensinam que é possível a dinamização da distribuição do ônus da prova:

De outro lado, o ônus da prova pode ser atribuído de maneira dinâmica, a partir do caso concreto pelo juiz da causa, a fim de atender à paridade de armas entre os litigantes e às especificidades do direito material afirmado em juízo. Não há nenhum óbice constitucional ou infraconstitucional à dinamização do ônus da prova no processo civil brasileiro. Muito pelo contrário. À vista de determinados casos concretos, pode se afigurar insuficiente, para promover o direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva, uma regulação fixa do ônus da prova, em que se reparte prévia, abstrata e aprioristicamente o encargo de provar. Em semelhantes situações, tem o órgão jurisdicional, atento à circunstância de o direito fundamental ao processo justo implicar direito fundamental à prova, dinamizar o ônus da prova, atribuindo-o a quem se encontre em melhores condições de provar.

Inegavelmente, se uma das partes é hipossuficiente, quem está em melhores condições de provar é a outra. O consumidor tem o direito básico de inversão do ônus da prova, em seu favor, pelo inciso VIII do art. 6º do CDC, em dois casos: quando suas alegações forem verossímeis (i) ou quando ele for hipossuficiente.

Por hipossuficiênciaaqui, deve-se entender a impossibilidade de prova – ou de esclarecimento da relação de causalidade – trazida ao consumidor pela violação de uma norma que lhe dá proteção – por parte do fabricante ou do fornecedor. A hipossuficiência importa quando há inesclarecibilidade da relação de causalidade e essa impossibilidade de esclarecimento foi causada pela própria violação da norma de proteção.

Como se vê, o critério ao se auferir a hipossuficiência, no caso concreto, pode ser econômico, mas também pode ser técnico, como no caso de responsabilidade dos hospitais. Nesse sentido, a classificação quaternária da vulnerabilidade também pode ser aqui utilizada.

Anote-se que “ao juiz é facultado inverter o ônus da prova inclusive quando esta prova é difícil mesmo para o fornecedor, parte mais forte e expert na relação”, afinal, o intuito “do CDC é justamente de facilitar a defesa dos direitos dos consumidores e não o contrário, impondo provar o que é em verdade o ‘risco profissional’ ao – vulnerável e leigo – consumidor”. Ou seja, sendo o processo um instrumento, o que realmente vai importar é a defesa do consumidor, e não o ônus probatório em si. A inversão do onus probandi é concedida para favorecimento do consumidor se hipossuficiente, esta é a proteção que pretende o CDC.

A inversão, porém, não pode ser automática, dependendo sempre do caso concreto e do convencimento do magistrado acerca da hipossuficiência – é nesse sentido que aponta a jurisprudência majoritária.
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1.      O DIREITO À INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CDC
DIOGO RODRIGUES MANASSÉS: Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná

A defesa do consumidor por meio da criação de um microssistema de fundamento constitucional exigiu que as providências de tutela não ficassem confinadas ao estabelecimento de novos direitos subjetivos, regras contratuais e regimes de responsabilidade. Foi necessária, igualmente, a previsão de normas processuais que assegurassem a efetividade dos direitos tutelados pelo CDC.  Nas precisas palavras de Bruno Miragem:


A preocupação com a efetividade vai estabelecer uma correspondência eficiente entre o direito subjetivo de proteção do consumidor e a finalidade observada a partir deste direito, com os meios processuais conducentes a este fim. Esta correspondência, antes de um ensaio meramente formal já havido no direito tradicional sob a célebre disposição de que ‘a todo o direito corresponde uma ação que o assegura’, passa a vincular direito material e os meios processuais conducentes a sua eficácia, com instrumentos inspirados pela efetivação dos direitos, combinando o reforço dos poderes do juiz, a celeridade e a utilidade da prestação jurisdicional.[1]


Uma das mais importantes inovações do CDC, com grande repercussão prática, está prevista em seu art. 6.º, VIII, que estabelece como direito básico do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”.

Nos ditames do art. 333, do Código de Processo Civil, a distribuição do ônus da prova, regra geral, se dá nos seguintes moldes: incumbe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito (inciso I); e, ao réu, a existência de fatos modificativos, extintivos e impeditivos do direito do autor (inciso II). Segundo o entendimento clássico, as regras emanadas do artigo sobredito seriam objetivas e fixas, distribuídas prévia e abstratamente pela lei, de forma imutável (regra da distribuição estática do ônus da prova).

Se tal regra funciona relativamente bem entre partes iguais, não se mostrasuficiente para a defesa dos interesses do consumidor, vulnerável em face do fornecedor. Daí a importância do art. 6.º, VIII, do CDC, que flexibiliza as regras sobre a distribuição do ônus da prova, conferindo ao juiz a possibilidade de determinar a inversão deste ônus quando verificar, no processo, a presença daverossimilhança da alegação ou da hipossuficiência do consumidor.
Percebe-se, assim, que o objetivo do CDC é facilitar a defesa dos interesses do consumidor no campo da instrução probatória, de modo a permitir a igualdade substancial também no plano processual.
 

1.1.   Requisitos da inversão


O reconhecimento do direito à inversão do ônus da prova está condicionado à verificação, pelo juiz da causa (inversão ope iudicis), da presença, alternativamente, dos requisitos da verossimilhança da alegação ou da hipossuficiência do consumidor. 
Considera-se verossímil a alegação que tem aparência de verdade, que é plausível, ou ainda, que é provável, que não repugna à verdade. Por se tratar de conceito jurídico indeterminado, compete ao juiz, na análise do caso concreto, e conforme as regras ordinárias de experiência, definir o seu conteúdo.
Hipossuficiência é a dificuldade do consumidor para produzir no processo a prova do fato favorável a seu interesse, seja porque ele não possui conhecimento técnico específico sobre o produto ou serviço adquirido (hipossuficiência técnico-científica), seja porque ele não dispõe de recursos financeiros para arcar com os custos da produção dessa prova (hipossuficiência econômica). Noutras palavras, hipossuficiência é a incapacidade técnica ou econômica do consumidor para produzir a prova necessária à satisfação da sua pretensão em juízo.  
Note-se que hipossuficiência não é sinônimo de pobreza. Um consumidor, mesmo não sendo considerado pobre, poderá ser considerado hipossuficiente, caso a produção da prova seja muito onerosa ou complexa para ele. 
Por outro lado, registre-se que o conceito de hipossuficiência não se confunde com o de vulnerabilidade. Vulnerabilidade é a condição de inferioridade técnica, jurídica ou econômica do consumidor frente ao fornecedor. Conforme visto, a vulnerabilidade de todos os consumidores é presumida por força de lei (art. 4.º, I, do CDC). Por sua vez, hipossuficiência é a dificuldade do consumidor para produzir determinada prova no processo, por fatores técnicos ou econômicos. Ao contrário da vulnerabilidade, não é presumida por lei, devendo ser verificada pelo juiz da causa, in concreto, de acordo com as regras ordinárias de experiência. 
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Antes de adentrarmos no julgado do STJ, façamos algumas observações importantes sobre esta inversão de que trata o art. 6º, VIII do CDC:
  • É possível em duas situações, que não são cumulativas, ou seja, ocorrerá quando a alegação do consumidor for verossímil OU quando o consumidor for hipossuficiente (segundo as regras ordinárias de experiência);
  • É ope iudicis (a critério do juiz), ou seja, não se trata de inversão automática por força de lei (ope legis). Obs: no CDC, existem outros casos de inversão do ônus da prova e que são ope legis (exs: art. 12, § 3º, II; art. 14, § 3º, I e art. 38).
  • Pode ser concedida de ofício ou a requerimento da parte;
  • Revela que o CDC, ao contrário do CPC, adotou a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, ou seja, o magistrado tem o poder de redistribuir (inverter) o ônus da prova, caso verifique a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência do consumidor.
  • É nula a cláusula contratual que estabeleça a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor (art. 51, II, do CDC).
  • A inversão do ônus da prova não tem o efeito de obrigar a parte contrária a arcar com as custas da prova requerida pelo consumidor.
Vulnerabilidade:
Diz-se que a pessoa é vulnerável quando ela é a parte mais fraca da relação de direito material.

O consumidor é presumidamente vulnerável no mercado de consumo (art. 4º, I, do CDC).

Desse modo, presume-se, de forma absoluta (jure et de juris), que o consumidor é mais fraco que o fornecedor na relação jurídica entre eles estabelecida.

Essa vulnerabilidade deve ser analisada sob três aspectos:
  • Econômica
  • Técnica
  • Jurídica/científica (exs: matemática, contabilidade etc.)
Vale ressaltar, ainda, que vulnerabilidade é diferente de hipossuficiência:



Vulnerabilidade
Hipossuficiência
É um conceito de direito material.
É um conceito de direito processual.
Trata-se de presunção absoluta (jure et de juris), ou seja, sempre se reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
Trata-se de presunção relativa que, sempre precisará ser comprovada no caso concreto diante do juiz.
Conclui-se que todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente.



[1] MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 341.

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